sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

CHIEF BÀBÁLÀWÓ IFÁBUNMI OLÁSEUN AWÓRENI: CARINHO E RESPEITO

CHIEF BÀBÁLÀWÓ IFÁBUNMI OLÁSEUN AWÓRENI: CARINHO E RESPEITO: Nossos ritos, são feitos com carinho e muito respeito. nossa egbé se sente feliz, quando existe a motivação de poder estar com nossos oris...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Iguarias da cozinha Africana Tradicional - Acarajé

Acarajé como comida típica das baianas

Acarájé como oferenda para Orixás
Desde a década de 70 do século XX, muita coisa vem mudando na feitura e composição do acarajé, bem como na imagem da baiana, e aí está o ponto fulcral da discussão que queremos abrir aqui, sem nenhuma pretensão de encerrar. Concorda-se que o patrimônio cultural intangível, transmitido de geração a geração, seja constantemente recriado nas comunidades e nos grupos em resposta ao meio ambiente em que vivem, a sua integração com a natureza e à história, e lhes dá um sentido de identidade e de continuidade promovendo, de tal modo, o respeito pela diversidade cultural e pela criatividade.
Obviamente que o registro intencionou, além de reconhecer a importância, preservar, salvaguardar, manter uma determinada tradição. Assim, cabe ao estado fazer o acompanhamento das mutações. Mas, como será isto possível em meio às mudanças nas práticas e hábitos sociais aos quais estamos inexoravelmente submetidos em nossa sociedade capitalista? Afinal, qual é a identidade do acarajé?
Voltemos à década de 70, quando os ortodoxos especialistas em comida baiana apontaram como uma heresia à tradição a introdução de outros molhos e mesmo antigas “comidas de azeite”, como o vatapá e o caruru. Outras novidades foram chegando, como o camarão (aferventado e ligeiramente passado no azeite), o molho de tomate (uma espécie de vinagrete). Tudo isso passou a ser chamado de “recheio”. E as mudanças agradaram, aos baianos e turistas.

Concomitantemente, as baianas também mudaram ao longo do século XX: deixaram de ser ambulantes, modificaram o antigo processo de produção e, de olho nas ruas onde havia maior circulação de pessoas, fixaram-se em “pontos”, ocupando com tabuleiros de desenhos variados a urbes, que logo as absorveu como parte da paisagem da Bahia, conferindo-lhes mais capital simbólico. A baiana e seu tabuleiro são anexados à paisagem, e a prefeitura regulamentou, com posturas e decretos, seu comércio; impôs regras inerentes à vigilância sanitária, e ofereceu cursos de higiene e saúde pública. As baianas gostaram, não reagiram à qualificação que, ademais, privilegiavam-nas com certificados, os quais muitas exibiam orgulhosas junto ao tabuleiro.
Mesmo assim, manteve-se o vínculo com o sagrado em um rito discreto, que começava com a purificação da área em que se instalavam, bem como no tabuleiro, ornado com toalhas de cores específicas, plantas e objetos ritualísticos.


Algumas baianas viram empresárias, contratam empregados e, sobretudo, agregaram-se em corpos sociais para além daquele que mais as fortaleceu: o candomblé. Em 1990 é fundada a Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia (ABAM) que, em 2004, contava com dois mil associados. O acarajé passa então a ser encomendado em formatos menores para ser degustado como “tira-gosto”, ao lado de batata frita, amendoins, queijos, etc.

Para atender ao mercado consumidor, o acarajé vai deixando de ser apenas a merenda da tarde e preenche, para muitos, o lugar de uma das refeições principais do dia, com calorias suficientes para alimentar um trabalhador, seja operário, escriturário, estudante etc. Assim, seu tamanho passa a ser o dobro daquele que chegou à Bahia e, mesmo contrariadas, as baianas antigas tiveram de se adequar ao mercado. Assim, as mudanças vão sendo introduzidas e surgem da competição entre elas, cada uma com o seu “diferencial” para atrair clientes. De maneira lenta, outras baianas vão adotando tal variação, até que o cotidiano as absorve como uma prática que parece nunca ter sido novidade. Vão surgindo novas identidades.
As novidades não pararam aí: homens passam a atuar no ramo, o que vira peleja na Federação de Cultos Afro-Brasileiros. Mas o tempo do cotidiano também trata de acolher os “baianos” que, embora em número muito menor que as mulheres, entraram neste mercado que a indústria do turismo incrementa após 1970. Baianas famosas criam suas indústrias caseiras, fazem a massa em escala maior e passam a ter vários pontos distribuídos na cidade. Tempos depois, a massa pronta passa a ser vendida em feiras locais, o que não tarda a ser percebido pela indústria, que passa a produzi-la e distribui-la, em larga escala, para todos os estados. Hoje, os supermercados e delicatessens já expõem, nas suas prateleiras, o acarajé e o abará congelados, prontos para serem colocados no microondas dos fregueses, muitos deles nem imaginam como essa história começou.

Em 2005, considerando a marca da cidade como capital turística, a prefeitura de Salvador quer padronizar a imagem da baiana e determina que, para vender seu produto, as baianas teriam de usar roupas, tabuleiros e sombreiros personalizados. A intenção da Secretaria de Serviços Públicos (SESP), responsável pelo comércio da cidade e reguladora da normativa, vem responder aos anseios da formatação da imagem da cidade como cartão postal turístico, no qual a imagem da baiana já estava inserida. Mais uma vez, as baianas gostaram e a SESP assinou um acordo com a ALBAM, desdobrando-se aí uma nova peleja, que incidia sobre outro aspecto: na repressão àquelas que não usavam o traje de baiana para venderem o acarajé, o que, ademais, tornava-se cada vez mais comum, haja vista a inserção de mulheres oriundas das religiões pentecostais neste mercado. Este fato também vem trazendo muita discussão. Se para as baianas significa concorrência, para os órgãos de turismo, a transgressão no uso da roupa e formato do tabuleiro significa descaracterização da paisagem.
Instalada a concorrência, muitas mulheres evangélicas mantiveram os trajes tradicionais, mas não deixavam de sinalizar visualmente, por alguma descrição, ou pela ausência de plantas e ornatos ritualísticos, a presença de Jesus. Repercutia no vocabulário do cotidiano da cidade uma forma evangélica de se referir ao acarajé: “bolinho de Jesus”. De uma forma ou de outra, percebo aí uma metamorfose da iguaria, mas não da sua sacralidade: é como se a fé fosse um ingrediente indispensável.
Nem todas as modificações foram bem-vindas, como a do liquidificador que substituiu a pedra de moer o feijão, mas foram inerentes ao ofício das baianas. Por outro lado, é relevante o fato de ser esta uma atividade relevante para as mulheres e suas famílias. Tanto para as escravas e forras que conseguiram alcançar liberdade e servir ao ofício servindo ao seu orixá, quanto para as mulheres atuais, adeptas ou não do candomblé. 
Penso que a intenção do registro dos bens imateriais, quando incide sobre determinada cultura e seus artefatos, ainda guarda limites de compreensão sobre o que é cultura e como ela se renova, se desterritorializa. Os bens materiais e imateriais que reúnem não pertencem a todos, ainda que formalmente a instrução seja esta, formam-se imaginários de preservação. Os grupos sociais se apropriam de forma desigual e diferente da herança cultural. O patrimônio nacional é um espaço de disputa econômica, política e simbólica. Portanto, qualquer que seja o interesse em preservar uma tradição dentre as diversas que existem, que possamos pensar em outras possibilidades, e de acordo com a especificidade do nosso patrimônio cultural, algo que emerja de uma apropriação democrática, com condições materiais e simbólicas para que todas as classes encontrem nele um significado e possam compartilhá-lo.

Por Lysie Reis